Matéria de Jacqueline Elise, publicada originalmente no UOL Universa,
em 25/07/2019.
Milena Telles descobriu que o marido era gay quando eles já tinham uma filha
No episódio da novela “A Dona do Pedaço” que foi ao ar na última quarta (24), Lyris (Deborah Evelyn) foi à construtora de seu marido Agno (Malvino Salvador) para contar a todos o segredo dele e o motivo da separação do casal: Agno, na verdade, é gay.
A reação de Lyris é semelhante a que acontece na vida real, segundo a psicóloga e psicoterapeuta Vera Moris, coautora do livro “Coragem de ser: relatos de homens, pais e homossexuais” (Edições GLS). A maioria dos relacionamentos desfeitos quando um dos pares descobre que o cônjuge é gay acaba com uma briga feia e eles não costumam manter uma amizade depois disso.
Mas há pontos fora da curva. A gerontóloga Milena Telles Longhi, de São Paulo (SP), conta que descobriu, depois de quatro anos casada, que seu marido era gay. Eles conseguiram reconstruir a relação como amigos e costumam sair juntos, em casais: Milena, seu ex, e os companheiros de ambos. A história de Milena e de seu ex-marido fez parte do livro de Moris. Leia o relato:
“Eu e o João nos conhecemos em meados de 2011, num estande de venda de apartamentos. A gente trabalhava com educação infantil para uma amiga de minha mãe. Ela sempre dizia que ele era uma pessoa incrível, então ficamos amigos. Em julho daquele ano, eu estava solteira e fomos a uma festa juntos. Foi quando ficamos pela primeira vez.
Ele me pediu em namoro no Sesc Pompeia. A gente se dava tão bem, ele era muito engraçado e brincalhão. Conversávamos muito sobre sexualidade, até porque sou uma pessoa bem aberta para falar sobre isso. Eu mesma sou bissexual, e acho que esse foi um ponto muito importante da nossa história, para nos entendermos melhor.
Muitas pessoas me disseram que ‘já imaginavam’ que ele fosse gay, porque ele era mais delicado. Mas, na minha cabeça, isso não era um problema. Perguntei várias vezes se ele também era bi, se ele tinha interesse em homens, se já tinha ficado com algum, mas ele negava. Nunca tive dúvida de que ele me amava, porque sempre demonstrou isso. Ele me pediu em casamento em um avião, durante uma viagem nossa. Quando nossa filha Giovanna nasceu, em 2013, ele ficou muito emocionado. Ficamos juntos por quatro anos.
Não tinha nada estranho no nosso relacionamento. Mas sempre teve uma coisa da parte dele que me deixava com a pulga atrás da orelha. Sempre fui uma pessoa muito livre, nunca gostei de pertencer a alguém e nem acho que alguém tem de ser ‘meu’. E, justamente por ser assim, achava que não precisava mentir, que ele poderia me avisar se fosse sair com alguém. Mas ele sempre dizia que ‘estava trabalhando’, avisava tudo em cima da hora, me enrolava e às vezes não voltava para casa. Quando voltava, estava bêbado. Eu ficava puta. Ele não fazia isso todos os dias, mas eu ficava preocupada, porque ele tinha um irmão alcoólatra. Em relação à sexualidade, ele nunca tinha apresentado qualquer questão.
Eu estava em uma situação precária; nossa filha era muito pequena, morávamos em uma casa muito simples, em cima de um bar. Brigamos muito nessa época, tentei conversar várias vezes com ele, até que disse para ele fazer terapia logo, porque seria minha última tentativa de fazer aquilo dar certo. Foi quando ele começou a se abrir.
Uma vez, enquanto víamos TV, assistimos à propaganda de uma boneca. Ele comentou que a boneca era legal e eu comentei, de brincadeira: ‘Você não é gay, mas tem alvará, né?’. E aí ele abriu o jogo: ‘Meu terapeuta falou que eu precisava te contar isso. Já fiquei com homens’. Achei bom que ele já tivesse experimentado, de verdade, e fiquei mais feliz ainda por ele estar se abrindo. Até pedi detalhes, porque achei que isso tinha sido antes de nós ficarmos juntos.
Só que, algumas horas depois, minha ficha caiu. E eu perguntei se, quando ele saía e não voltava para casa, ele estava ficando com outros homens. Ele confessou que sim. Na hora não consegui demonstrar sentimento. Sofri calada, porque me machucou demais por dentro. Aquilo foi o começo do nosso fim como marido e mulher.
Não brigamos nem nada, apesar de ter doído demais. Lembro de ter passado por momentos no trabalho em que eu olhava para o nada, sem saber o que fazer. Eu amava aquele homem, mas sabia que eu não podia mais ficar com ele. Lidei com isso saindo com outras pessoas, meio que para ‘machucar’ meus sentimentos pelo João. No começo foi horrível, mas aos poucos foi ficando mais fácil. Nos separamos depois de quatro anos juntos e ‘nos reinventamos’ como amigos.
As pessoas diziam que eu estava sendo traída, mas não consigo enxergar como uma traição. Aquela era a forma de conseguir viver aquilo. Eu sabia que, se não fosse pela questão de ele ser homossexual, ele não faria isso comigo. Ele precisava viver essa questão interna. Tanto que hoje ele se casou com outro homem, eu também me casei com outra pessoa, e sei que ele não trai o novo marido dele.
Vejo que agora estamos muito melhor. Estaremos para sempre na vida um do outro, e acho que isso é muito bonito. Já nos ofendemos e brigamos, mas sempre voltamos ao normal porque nos amamos demais, agora como irmãos. Ele se casou com outro cara, e eu me casei com outra pessoa, o Neto, e tive outra filha.
Costumam me perguntar como é para Neto aceitar essa nossa dinâmica, mas desde que nos conhecemos eu fui muito honesta: ‘Prazer, sou a Milena, tenho uma filha pequena e meu ex-marido, pai dela, é gay. Amo o João, mas de outra forma’. Então, se ele me quisesse, teria que ser desse jeito.
Eles têm uma convivência ótima. Às vezes, o João vai lá em casa cuidar das meninas para que eu e meu marido possamos trabalhar e fazer outras coisas. Todo mundo se ajuda aqui, acho muito saudável e dá leveza para todos os lados. Tem dias que eu chego em casa tarde do trabalho e estão lá meu marido e João bebendo cerveja, batendo papo e comendo pizza.
Pra Giovanna foi mais complicado. Até pouco tempo atrás ela dizia que deixou de ser bebê quando a gente se divorciou. A princípio, quando nos separamos, morávamos perto e tínhamos guarda compartilhada. Mas ela chorava muito, foi bem difícil. Ela falava que queria nos ver juntos de novo. Agora, ela amadureceu, entendeu melhor a situação, fez terapia e ganhou uma irmã mais nova também, filha do Neto.
O sonho dela é que a gente tenha uma casa enorme para que possamos morar todos juntos: eu, Neto, a irmãzinha dela, o João, o marido dele e as filhas deles! Nós sempre saímos para jantar com eles, minhas filhas e as meninas do João têm uma relação ótima, frequentamos os aniversários uns dos outros. Estamos combinando de viajarmos juntos em breve. Foi um processo, mas hoje vejo que compensa demais”.
Para ler a matéria na íntegra, acesse: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2019/07/25/minha-historia-eu-meu-ex-marido-e-o-marido-dele.htm
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Conheça o livro “Coragem de ser”, mencionado na matéria:
CORAGEM DE SER
Relatos de homens, pais e homossexuais
Autores: Vera Moris, Fábio Paranhos
EDIÇÕES GLS
Contrariando o senso comum, estudo recente realizado na Universidade de Toronto, no Canadá, estimou que mais da metade dos pais homossexuais era composta por pais biológicos e não adotivos. De início, essa informação gera questionamentos do tipo: por que se casou e teve filhos se sabia ser gay? Por que escondeu o fato da família? Trata-se de um ato de covardia?
Este livro mostra que esse raciocínio, mais que incorreto, é preconceituoso. Esses homens se casaram com parceiras por quem estavam apaixonados e com elas tiveram filhos. Viveram, entre o namoro e o casamento, uma vida satisfatória. Para alguns, encontrar a mulher amada depois de uma infância e de uma adolescência problemáticas representava a possibilidade de constituir família. Porém, mais tarde, eles constataram aquilo que não conseguiam mais esconder: a inevitável atração – tanto sexual quanto afetiva – por pessoas do mesmo sexo.
Como agir diante de tal constatação? Que fazer quando se percebe que não se pode mais enganar a si mesmo? Como não machucar as pessoas que ama – pais, amigos, parentes próximos e, sobretudo, a esposa e os filhos?
Neste livro, Vera Moris e Fabio Paranhos apresentam 15 depoimentos de homens que assumiram a homossexualidade depois de ter formado uma família. A vergonha, a dor e a culpa aparecem nos relatos, assim como a esperança, a capacidade de superação e o amor incondicional pelos filhos.