Reportagem de Sarah Moura, publicada originalmente no VivaBem UOL,
em 13/02/2021

A autônoma Glória*, 35, demorou oito anos para entender que a dor que tinha no peito esquerdo se tratava de ansiedade. Assim como as crises de choro, a falta de ar, a taquicardia, as manchas roxas pelo corpo, a dificuldade em dormir e os calafrios. O diagnóstico tardio do transtorno, junto com o de síndrome do pânico, foram influenciados pela relação abusiva de 18 anos que teve com o ex-marido. Segundo especialistas, um relacionamento com violências é capaz de deixar traumas físicos e psicológicos.

“Eu sabia que tinha alguma coisa errada, mas não sabia o quê. Eu levei muito tempo para procurar ajuda, não sabia por onde começar”, conta Glória. Ela se casou muito nova, ainda no fim da adolescência, com um homem quase duas décadas mais velho. Durante a relação, passou por vários episódios de violência. “Uma vez levei uma testada no nariz. Fiquei meia zonza e, quando voltei a mim, ele estava segurando meus dois braços e mandando eu repetir o que eu havia falado. E eu pensando ‘vou repetir o quê?’. Eu nem sabia por que tinha apanhado”.

Uma relação é considerada abusiva quando existe qualquer tipo de violência, seja ela física, como agressões; psicológica, quando há dano emocional; patrimonial, com a privação de bens, valores e documentos pessoais; sexual, em qualquer tipo de relação não consensual; moral, em caso de calúnia e difamação.

“No relacionamento abusivo, a pessoa nunca tem estabilidade. Ou é tudo ou não é nada. Existe uma sensação de muito desespero, desequilíbrio, ansiedade, adrenalina”, comenta a psicóloga Eglacy Sophia, doutora em Amor Patológico pela USP (Universidade de São Paulo). “As pessoas, algumas vezes, criam até doenças de tão adrenérgica que é essa relação. São problemas físicos de ansiedade, depressão, estresse”.

O abuso e as doenças

O discurso do abusador é para diminuir o outro, invalidando os questionamentos e indagações. O abusado não percebe, acaba entrando em uma espiral na qual se sente muito culpado. E então, o corpo, assim como a mente, vai registrando os abusos psicológicos e físicos, explica a psicóloga Andrea Lorena Stravogiannis, coordenadora do Setor de Amor e Ciúme Patológicos do Hospital das Clínicas de São Paulo.

A longo prazo e com toda a energia focada na relação, a pessoa pode sofrer um esgotamento que contribui para desencadear doenças. O sistema imunológico fica mais vulnerável, pela tensão quase permanente. A sensação pode facilitar o surgimento de dores crônicas, principalmente musculares, e sobrecarregar alguns órgãos.

O estresse e ansiedade, que geralmente interferem no comportamento alimentar ou podem provocar sintomas semelhantes aos da gastrite —é a chamada “dispepsia funcional”, popularmente conhecida como “gastrite nervosa”.

Além disso, a entrega ao outro pode ser tão intensa que não resta estímulo para mais nenhuma área da vida, como no trabalho, estudos e as demais relações sociais. “A pessoa está totalmente sem energia para fazer as coisas dela. Você percebe que ele não se desenvolve. A gente tem no nosso emocional uma quantidade de energia, se a direcionamos por completo ao outro ou para o relacionamento, sobra zero”, observa a psicóloga Eglacy Sophia.

É por abrir mão do autocuidado inconscientemente, sobretudo pela manipulação característica dos abusos, que o corpo “grita” e dá sinais de que algo está errado. “Essas relações podem trazer desde as marcas mais evidentes, até as mais profundas, que são as da alma. O que mais se vê relatado em estudos epidemiológicos, são transtorno de ansiedade, depressão, automutilação, dor crônica e transtorno de estresse pós-trauma”, comenta Ângela Figueiredo, psicóloga e doutora em psicologia clínica pela PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul).

A profissional alerta para o último transtorno, postulado após a Primeira Guerra Mundial e relacionado aos impactos traumáticos apresentados nos soldados que retornaram dos campos de batalha. Figueiredo explica que a condição é “extremamente debilitadora, impedindo muitas pessoas de trabalhar, por exemplo”.

As consequências são maiores conforme o tempo de exposição ao trauma, mas pautadas principalmente pela intensidade. “A frequência e o tempo de duração são diretamente proporcionais à gravidade [do trauma], mas também não excluem que haja pouco tempo de inter-relação”, observa a psicóloga.

As especialistas ouvidas pelo VivaBem destacaram outras consequências que podem acometer quem vivencia uma relação abusiva:

  • Autoagressividades: vão desde a ausência do autocuidado e abdicação de hábitos comuns — como deixar de frequentar ambientes que gostava — até a automutilação e incidência de pensamentos suicidas. Outra sintomatologia é a chamada atitude suicida passiva, quando a pessoa inconscientemente se coloca em situações de risco;
  • Introjeção: é a interiorização das atitudes do abusador para replicá-las em outras relações familiares ou sociais;
  • Fugas: os desgastes podem refletir em mecanismos de fuga da realidade, como o uso abusivo de álcool, drogas ou compras excessivas, na tentativa de aliviar momentaneamente os sintomas estressantes;
  • Baixa na imunidade: o enfraquecimento do sistema imunológico torna o organismo mais suscetível e exposto ao desenvolvimento de doenças e sintomas crônicos; Diminuição ou aumento brusco do apetite;
  • Alterações do sono;
  • Ciclo vicioso nos relacionamentos: após viver uma relação abusiva, é necessário embarcar em um processo de autoconhecimento para entender as experiências e os traumas acumulados. Caso contrário, é muito comum às pessoas que não buscam tratamento viver um ciclo vicioso de envolvimentos abusivos

Sair do labirinto

A saída de um relacionamento abusivo não é solitária. Contar com uma rede de apoio é essencial —familiares, amigos e/ou ajuda profissional. Isolada, Glória hesitou em compartilhar com um casal de amigos o que vivia com o então marido após ter uma forte crise de pânico. “Foi o ápice, veio tudo à tona. E começou a minha outra angústia de pensar com quem eu iria falar, o que eu iria fazer. Ninguém imagina o que eu passava, fui literalmente engolindo calada, ninguém sabia da pressão psicológica que eu vivia em casa”, conta.

Foi a partir da terapia que conseguiu ligar aos pontos, perceber as várias formas de manipulação e, pouco a pouco, se “empoderar da mulher que é”. Algumas das principais conquistas e prazer foi ter voltado a trabalhar e estudar, atividades desencorajadas pelo ex-marido desde o início da relação. “Ele reclamava que eu nunca estava em casa para ficar com ele ou que não atendia as inúmeras ligações que ele fazia enquanto estava no trabalho e não podia falar”, recorda.

Segundo Figueiredo, um grande obstáculo no tratamento das relações abusivas é justamente o isolamento das vítimas. Perceber que há algo errado e compartilhar isso pode levar muito tempo. “A vítima fica incapacitada porque está sugada dentro da relação, tem medo, e muitas pessoas a ridicularizam, por achar que não tem força, é fraca. Mas, na verdade, ela entrou no ciclo da violência e é bem difícil conseguir resgatar depois.”

*Nome alterado para preservar a integridade da fonte

Fontes: Andrea Lorena Stravogiannis, psicóloga e coordenadora do Setor de Amor e Ciúme Patológicos do Hospital das Clínicas de São Paulo; Ângela Figueiredo, psicóloga e doutora em psicologia clínica pela PUCRS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul); Eglacy Sophia, psicóloga, doutora em Amor Patológico pela USP (Universidade de São Paulo); Rosemary Peres Miyahara, coordenadora da área de formação do Centro de Referência às Vítimas da Violência do Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.

Para ler na íntegra, acesse: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2021/02/13/depressao-ansiedade-dor-como-uma-relacao-abusiva-pode-refletir-no-corpo.htm

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Rosemary Peres Miyahar, uma das fontes da matéria, é coautora de livros do Grupo Summus sobre o tema. Conheça-os:

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O FIM DO SILÊNCIO NA VIOLÊNCIA FAMILIAR
Teoria e Prática
Organizadoras: Dalka Chaves de Almeida FerrariTereza Cristina Cruz Vecina
Autores: Ana Carolina CaisArlete Salgueiro ScodelarioBeatriz Dias Braga LorenciniCecília Noemi M. Ferreira de CamargoDalka Chaves de Almeida FerrariGisela Oliveira de MattosIrene Pires AntônioLígia FromerMaria Amélia de Sousa e SilvaMárcia Rosana Cavalheiro GarciaRonaldo Pereira de SantanaRosemary Peres MiyaharaTereza Cristina Cruz Vecina
EDITORA ÁGORA

Os artigos aqui reunidos foram escritos por profissionais de centro de referência às vítimas de violência – CNRVV. O livro aborda temas como a retrospectiva da questão da violência, o modo de funcionamento de uma sociedade e as intervenções possíveis. É uma obra de grande importância para todos que lidam com esse tema devastador, mostrando que há, sim, saídas possíveis.

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A VIOLAÇÃO DE DIREITOS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES
Perspectivas de enfrentamento
Organizadoras:
 Christiane SanchesDalka Chaves de Almeida FerrariRosemary Peres Miyahara
Autores: Amaia Del CampoAna Cristina Amaral Marcondes de MouraBeatriz Dias Braga LorenciniBruna Limongi De DomenicoChristiane SanchesCláudio Hortêncio CostaDalka Chaves de Almeida FerrariEdson Takeyama MiyaharaIrene Pires AntônioJefferson DrezettJoana FernandesLilian Aparecida de Brito AlvesManoela de Oliveira LainettiMarisalva FáveroMichelle Barros Marques dos SantosPaulo César EndoReinaldo Cintra Torres de CarvalhoRosemary Peres MiyaharaSónia Oliveira
SUMMUS EDITORIAL

Muitos são os dilemas e impasses dos profissionais que compõem a rede de proteção integral à criança e ao adolescente em situação de violência. Muitas também têm sido suas iniciativas e possibilidades no enfrentamento da questão. Trata-se, sem dúvida, de um campo em constante construção. Este livro comemora os 20 anos do Centro de Referência às Vítimas de Violência do Instituto Sedes Sapientiae, trazendo importantes contribuições ao debate nessa área. Escritos por profissionais da equipe e por parceiros de percurso de atuação, os textos retratam de forma vívida as conquistas e os desafios daqueles que lutam pelo direito que crianças e adolescentes têm de crescer e viver num ambiente seguro e acolhedor.

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