Texto parcial de entrevista feita por Rachel Quintiliano e publicada originalmente na Revista Raça, em julho/2024

 

No mês que celebramos o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e também da Mulher Negra Brasileira (25 de julho), resolvemos abrir o espaço desta coluna para disseminar o pensamento negro e feminino, por meio de duas entrevistas.

A primeira, com a professora, pesquisadora e escritora negra Marise de Santana, organizadora, ao lado de Josildeth Gomes Consorte, do livro Mulher Negra e Ancestralidade, lançado em 2023 pelo Grupo Editorial Summus. E, a segunda, a ser veiculada na próxima sexta-feira, com a Dinha, Maria Nilda de Carvalho Mota, que é poeta, editora independente e pós-doutora em Literatura e Sociedade.

Marise de Santana é graduada em Pedagogia, mestre e doutora. Atua como professora nível pleno da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (Uesb), onde também é coordenadora do Programa Stricto Sensu em Relações Étnicas e Contemporaneidade e do curso de Pós-Graduação em Antropologia com Ênfase em Culturas Afro-Brasileiras do Odeere-Uesb. Na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), é professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Desenho, Cultura e Interatividade. Tem experiência nas áreas de Educação e Antropologia, atuando nos temas de Legado Africano, Cultura e Identidade; Cultura Negra; Trabalho e Formação Docente; Processo Ensino-Aprendizagem; Antropologia das Populações Afro-Brasileiras; e Educação das Relações Étnicas.

 

Revista Raça. Quando e porque você começa a escrever sobre mulheres negras?

Marise de Santana. A escrita é um processo resultante das oralituras, o que me faz escrever tomando como referência o meu pertencimento.  Eu sou filha de Ernestina e neta de Salu , duas mulheres que me educaram. Meu pai se desincumbiu da sua paternidade antes de eu nascer. Como acontece com a maioria das mulheres negras no Brasil, que criam seus filhos e filhas sem a figura do pai, com minha mãe não foi diferente. Mulheres negras, sempre contam com o auxílio de outras mulheres na educação das suas crias. Então, minha avó e minha mãe vão me criar, no Recôncavo Baiano, onde a presença dos legados africanos é muito forte. Na minha vida, é decisiva essa formação étnica e racial de presença africana. Então, escolho para estudar no doutorado “como professores e professoras trabalhavam em cidades em que fortemente existe a presença dos legados africanos?”. Começo a tomar os dados de pesquisa e não aparecem homens como sujeitos, só aparecem mulheres professoras. Embora a pesquisa tivesse como objetivo central os legados africanos, a presença das mulheres não se limitou ao lugar de objeto de pesquisa, os dados coletados nos sinalizam aportes fundamentais para que pudesse aprofundar o olhar sobre as mulheres negras em outras produções, como artigos, palestras e livros. Posso aqui citar, o livro “Mulher Negra e Ancestralidade”. No referido livro escrevi dois artigos, um deles, expressa a forma da mulher negra se prover em profissões consideradas ancestrais. No outro artigo, falo sobre feminilidade de mulheres Negras de Candomblé que são cabeças de Oboró. Como mulher negra de Candomblé, me sinto à vontade para atender ao desafio de falar de mulher, sem a pretensão de tomar a categoria gênero para o debate.

 

Revista Raça. A quem interessa o pensamento negro e feminino? Como ele contribui com a sociedade brasileira?

Marise de Santana. Eu entendo que o debate sobre as mulheres negras e o feminino seguem no bojo de um debate complexo. Em muitos grupos da sociedade brasileira patriarcal, o feminino está intrinsecamente ligado à mulher, à alimentação, à intuição, à maternidade, à passividade e à subjetividade. Nessa mesma sociedade brasileira, para grupos que seguem a estruturação de aprendizado mítico dos legados africanos, não há o debate do feminino assumindo a categoria generificada de “mulher”; nesses grupos, com conhecimentos africanos as Iabás não precisam pedir permissão para incorporar tomando os corpos dos homens. Assim como, os orixás considerados masculinos, não precisam pedir permissão para incorporar tomando os corpos das mulheres.

Em “A invenção das Mulheres: construindo um sentido africano para os discursos ocidentais de gênero” a socióloga nigeriana Oyèrónké Oyewùmí critica a tradição ocidental que toma os aspectos biológicos como únicos para se pensar a organização do mundo social. Ao tomar as referências africanas, ela aponta outras maneiras de compreender o papel social da mulher. Neste sentido, esses saberes dos legados africanos, solapam as estruturas sexistas reafirmando a necessidade das lutas negras contra profanações sexistas e racistas. Essas profanações sexistas, não é apenas luta das mulheres em favor delas próprias, mas de toda uma sociedade que se quer transformada. Penso que debates sobre a organização social das mulheres negras tomando como referências as formas de profanações, as quais as mesmas são submetidas, nos apontam encruzilhadas como espaços desafiadores para pensar sobre uma sociedade menos perversa com as mulheres, em especial, as negras.

 

Revista Raça. Qual a importância da ancestralidade para as narrativas negras e femininas?

Marise de Santana. Como estudiosa de legados africanos e etnicidades, eu preciso atentar para o texto étnico que aparece quando falamos em ancestralidade, ou seja, com códigos de saberes ancestrais que uma determinada pessoa ou grupo carrega.  Nesse sentido, como mulher negra, tomo os meus códigos para falar sobre a importância da ancestralidade para as narrativas negras e femininas. Nesta entrevista, iniciei afirmando que a escrita passa por um processo de oralituras, ou seja, minha escrita, assim como minhas narrativas, enquanto mulher negra, são frutos de uma pensar ancestral. Assim sendo, ser mulher, mulher negra, candomblecista, zeladora de legados africanos, professora, mãe, imprime nas minhas ações códigos ancestrais que impregnam a minha identidade étnica.

Ao escrever sobre “Mulheres negras do Recôncavo da Bahia, identidade étnica, profissão e ancestralidade “, no livro ” Mulher negra e ancestralidade” (2023), tomo alguns pressupostos neste constructo textual, para pensar a relação entre as profissões de mulheres negras (baianas de Acarajé, costureiras de roupas de axé) e suas formas de sustentar a si próprias e suas relações com a identidade e ancestralidade. Neste sentido, vou dizer que a construção de conhecimento para fazer roupas de axé, assim como, para fazer Acarajé, liga-se a ancestralidade e a identidade a partir da Constituição histórica com conhecimentos numa perspectiva que o passado é referência para o seu presente e futuro, como marca de resistência individual e coletiva. Essas mulheres invocam linguagens e valores próprios a fim de constituírem a sua identidade e de outros do grupo. Portanto, as mulheres sujeitas dessa pesquisa, que deu origem ao referido texto, reafirmam suas identidades na relação com a sua ancestralidade.

 

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Para ler a entrevista completa, acesse: https://revistaraca.com.br/com-a-palavra-marise-de-santana/

 

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Conheça o livro Mulher negra e ancestralidade, volume da coleção África, presente! Negritude e luta antirracista, da Selo Negro Edições.

Mulher negra e ancestralidade

Ana Piedade Armindo Monteiro
Delcirene Videira da Silva
Josildeth Gomes Consorte
e mais 6 autores
R$84,40

Sem esquecer a luta cotidiana e as adversidades que marcam a vida atual das mulheres negras, as autoras deste volume vão buscar na ancestralidade a base para a construção de um futuro permeado de conhecimento, arte, cuidado e justiça social. Assim, apelando para a força de mães de outrora, baseiam suas reflexões em um passado esquecido que, ao se revelar, mostra extrema potência transformadora. Entre os temas abordados neste volume estão: práticas ancestrais ligadas à figura feminina em Moçambique; a resistência aos casamentos prematuros naquele mesmo país; as diferenças entre mulheres negras (brasileiras e africanas) e mulheres eurocentradas; a sabedoria das moradoras do Recôncavo Baiano que exercem as profissões de costureiras e vendedoras de acarajé; a educação nos terreiros de candomblé, assentada em valores éticos ancestrais; a trajetória de professoras alfabetizadoras na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental; as lutas das mulheres negras no Brasil, nos Estados Unidos, na Europa e no continente africano; as mulheres amazônicas que atuam como “servas e empregadas” do Divino Espírito Santo de Mazagão Velho, no Amapá.

A coleção África, presente! Negritude e luta antirracista constitui um espaço de produção e divulgação do pensamento não hegemônico acerca de africanos, afro-brasileiros e indígenas. Seu objetivo é problematizar e contestar cientificamente paradigmas, falácias e metodologias euro-ocidentais.

 

 

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