Silvia M. Gasparian Colello é pedagoga com mestrado, doutorado e livre-docência na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Nessa mesma instituição, atua como docente dos cursos de graduação e pós-graduação, dedicando-se também à orientação de mestrandos e doutorandos. É coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alfabetização e Letramento (Geal), membro do núcleo de pesquisa Novas Arquiteturas Pedagógicas, onde desenvolve pesquisas na área de Ensino da Língua Escrita e autora de vários livros publicados pela Summus Editorial. No mês de outubro, em que estamos abordando o tema educação, Silvia nos concedeu uma entrevista exclusiva sobre alfabetização. Confira a seguir.
– Em seus livros, ao abordar a temática da alfabetização, você relaciona esse processo de aprendizagem ao contexto do mundo globalizado e tecnológico. Como se explica essa relação?
Quando a língua escrita é concebida como prática de comunicação (e não como simples código, pautado na relação entre letras e sons), o desafio da escola é ensinar a ler e escrever em associação com efetivas práticas sociais de uso da língua, por exemplo: fazer listas de compras, trocar mensagens por e-mail, ler jornais e revistas, fazer relatórios, expressar opiniões, escrever histórias, preparar convites, interpretar regulamentos, navegar em diferentes sites da internet, buscar informações, registrar conhecimentos, mandar e receber notícias. Mais do que compreender o sistema alfabético e assimilar regras ortográficas ou gramaticais, aquele que se alfabetiza constrói competências para relacionar propósitos e gêneros da língua escrita, ajustando-se aos interlocutores com base em suportes e instrumentos disponíveis na nossa sociedade. Como não existe uma língua independente de seus usuários e de seus contextos de vida, a produção e a interpretação da língua são construções específicas em cada situação comunicativa. Longe de ser uma aprendizagem instrumental que, no passado, justificava práticas pedagógicas mecanicistas (como a “cópia pela cópia”, a soletração e a silabação), a alfabetização pressupõe (e ao mesmo tempo implica) uma certa condição do sujeito na relação com o seu mundo.
Partindo do princípio de que cada sociedade, em cada momento histórico, tem suas próprias práticas de comunicação, é possível afirmar que ser alfabetizado hoje é diferente do que era ser alfabetizado em qualquer outra época. No nosso mundo — globalizado e tecnológico — assistimos à emergência de novos modos de lidar com a língua escrita, formas inéditas de consultar, redigir, editar, divulgar, armazenar e enviar dados. Nesse contexto, aprender a ler e escrever é aprender a usar a língua com os recursos do nosso tempo, razão pela qual a alfabetização e a alfabetização digital deveriam ser partes de um mesmo processo.
Assim, o desafio dos educadores é romper com as barreiras que separam a escola da vida e fazer da alfabetização um processo contínuo de aprofundamento de crianças, jovens e adultos na sociedade letrada.
– Em seu livro Crianças na escola… E agora?, você fala sobre a impossibilidade de pressupor, logo no primeiro ano de escolaridade, um “estágio zero” de conhecimentos sobre a língua escrita. Então, quando e como se inicia a alfabetização?
Entendida como um longo processo de aprendizagem, a alfabetização se inicia muito antes de as crianças entrarem na escola. Isso porque, desde que nascem, elas convivem com práticas de leitura e escrita. Ao acompanhar a avó seguindo uma receita culinária para fazer um bolo, ao ouvir uma história, ao ver o pai lendo um jornal, o irmão fazendo lição de casa ou a mãe trabalhando no computador, meninos e meninas, desde muito cedo, vão se perguntando sobre as funções e especificidades da escrita e acabam por tecer hipóteses sobre seu funcionamento. Assim, muitos acabam compreendendo que a escrita representa a linguagem, que ela se vale de caracteres convencionais para expressar ideias e atingir objetivos específicos. Não raro, crianças de quatro ou cinco anos começam a perceber as diferenças entre a oralidade e a escrita ou, ainda, tornam-se capazes de discriminar diferentes gêneros textuais. Por isso, ao entrarem na escola, já trazem consigo inúmeros conhecimentos processados em situação informais de comunicação. Chamamos de “letramento emergente” o conjunto dessas experiências e, mais precisamente, o impacto que elas têm na aprendizagem pré-escolar — uma condição que faz a maior diferença na alfabetização escolar.
Infelizmente, como essas experiências costumam ser desiguais entre diferentes famílias ou camadas sociais, as crianças chegam à escola com diferentes graus de conhecimento, motivação, ritmos de aprendizagem e possibilidades de desempenho, o que nem sempre é compreendido pela escola.
Se admitimos que a alfabetização se inicia antes mesmo da escolaridade, somos também obrigados a concluir que ela não se esgota em um curto período. Embora os dois anos iniciais do ensino fundamental se constituam como ciclo específico de sistematização do ensino da língua escrita, é certo que a alfabetização, como um longo processo de imersão na sociedade letrada, se prolonga por anos a fio.
– Historicamente, nos debates nacionais e internacionais, o mundo assistiu a diferentes propostas de alfabetização. No seu livro Alfabetização — O quê, por quê e como, você defende a postura pedagógica socioconstrutivista em oposição ao método fônico, indicado pelo governo Bolsonaro como principal diretriz para o ensino da língua escrita. Como se explica a diferença entre eles?
O método fônico e o ensino socioconstrutivista se diferenciam nas concepções de língua e de aprendizagem, e consequentemente se diferenciam também nos objetivos e metodologias de ensino.
Entendendo a língua escrita pela estrita relação entre letras e sons (grafemas e fonemas), os adeptos do método fônico postulam um programa de ensino passo a passo, no qual a criança, de modo passivo, vai progressivamente aprendendo a associar letras e sílabas até chegar às palavras e frases. O objetivo é a aquisição do sistema alfabético, o que justifica a progressão de primeiro aprender a língua para, depois, poder fazer uso dela.
Na abordagem socioconstrutivista, a meta é a apropriação da língua pela sua razão de ser, isto é, formar o sujeito efetivamente escritor, leitor, aquele que é capaz de lidar com a escrita nas práticas sociais de comunicação. Para tanto, privilegia, desde o início da alfabetização, os sentidos do ler e escrever, mobilizando a postura ativa e o esforço reflexivo dos alunos. Assim, eles partem de seus conhecimentos prévios sobre a língua para tecer hipóteses, testá-las, confrontar suas ideias com outras escritas, a fim de construir novos conhecimentos e competências de interpretação e de produção textual. A aprendizagem do sistema se faz em função da razão e do desejo de dizer ou compreender o mundo. Em outras palavras, é lendo e escrevendo que a criança aprende a ler e escrever.
– Segundo o Censo 2022, a taxa de analfabetismo no Brasil caiu nos últimos 12 anos. No entanto, não é possível medir com precisão o número de analfabetos funcionais. Em seus livros, você discute a diferença e as relações entre alfabetização e letramento. Como a compreensão desses conceitos nos ajuda a vislumbrar com mais clareza o quadro da sociedade leitora no Brasil?
Por muitos anos, no Brasil, o sujeito alfabetizado era aquele que conhecia o sistema de escrita a ponto de codificar e decodificar as palavras ou escrever o próprio nome. Ao final do século XX, em função de mudanças políticas, econômicas, sociais e tecnológicas, foi ficando claro que não basta saber ler e escrever nesse sentido estrito; é preciso formar verdadeiros usuários da língua escrita, sujeitos capazes de participar das práticas sociais letradas. Os inúmeros estudos sobre o letramento favoreceram a compreensão do problema do analfabetismo funcional: pessoas alfabetizadas, mas pouco letradas, ou seja, sem condições de fazer uso da língua. Por isso, ainda que a curva decrescente do analfabetismo no país seja uma boa notícia, a evidência de que a maioria dos brasileiros, mesmo tendo passado pela escola, não chega a um nível desejável de letramento parece alarmante. Fica aí um forte apelo por políticas educacionais mais favoráveis à superação do analfabetismo e do analfabetismo funcional; fica também um desafio para a revisão de princípios, diretrizes e práticas de ensino nas escolas; e, finalmente, fica uma convocação a todos os professores, para que invistam na formação de sujeitos leitores e escritores.
A Summus tem em seu catálogo várias obras de Silvia Colello. Conheça algumas abaixo.
Alfabetização
O quê, por quê e como
R$78,80Admitindo que a alfabetização, além de legítima meta pedagógica, é decisiva para a constituição do ser humano, o tema merece ser considerado por meio de abordagem multifacetada – o mosaico de fundamentação, conceitos, diretrizes, processos de aprendizagem, práticas de ensino e compreensão dos mecanismos de fracasso escolar. Com base nos apelos de nossa sociedade e nos desafios para a reversão dos quadros de analfabetismo, analfabetismo funcional e baixo letramento, esta obra pretende contribuir para os debates educacionais, apontando possíveis articulações entre “o que se ensina quando se ensina a ler e escrever”, “por que se ensina a ler e escrever” e “como se ensina a ler e escrever”. Na dialética entre teoria e prática, o livro assume o propósito de promover a compreensão para que melhor se possa ensinar. Nessa perspectiva, constitui-se como uma coletânea de textos que, mesmo independentes, “dialogam” recursivamente entre si e, ainda, marcam uma posição no atual cenário de incertezas e diversidade de proposições. Ao final, material complementar recheado de vídeos sobre a temática de cada capítulo.
Crianças na escola… E agora?
R$74,10Chegou o tão esperado momento: aquele em que a criança ingressa na escola. Dúvidas, dilemas e insegurança povoam a cabeça dos pais e dos familiares. Que instituição escolher? Como vai ser o período de adaptação? E seu meu filho ficar doente? O que fazer se ele sofrer bullying? Quais são as diferenças entre as principais propostas pedagógicas? Como se dá a alfabetização nos dias de hoje? Como as crianças aprendem e quais são as estratégias para favorecer esse processo? A lista de perguntas parece infinita.
Pensando nessa fase tão especial da vida das crianças e nos muitos desafios ao longo de toda a trajetória da educação básica, a educadora Silvia Colello discute as principais dúvidas dos pais sobre esse período. A autora parte de questionamentos reais advindos de um grupo de discussão do qual foi mediadora, oferecendo caminhos para os mais diversos tipos de inquietação. Além disso, esclarece os professores sobre as principais angústias dos pais, o que contribui para fortalecer a relação família‑escola. Leitura imperdível para todos os que se interessam pela educação e pela construção da cidadania.
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Escola que (não) ensina a escrever, A
R$82,40A fim de repensar as concepções acerca da língua, do ensino, da aprendizagem e das práticas pedagógicas, este livro levanta diversos questionamentos sobre a alfabetização como é praticada hoje nas escolas. Depois de analisar diversas falhas didáticas e tendências pedagógicas viciadas, a autora oferece alternativas que subsidiem a construção de uma escola que efetivamente ensine a escrever.
Para ver todas, acesse: https://www.gruposummus.com.br/autor/silvia-m-gasparian-colello/