Reportagem de Giulia Granchi, publicada originalmente na BBC News Brasil, em 18/10/2022

Durante o mais recente debate presidencial exibido no domingo (16/10) pela Band TV, os candidatos Jair Bolsonaro (PL) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) responderam a perguntas feitas por jornalistas sobre diferentes temas, como educação.

Quando os candidatos foram questionados sobre o que fariam para diminuir a defasagem educacional dos quase 10 meses sem aula durante a pandemia — o que atingiu principalmente os estudantes mais pobres — Bolsonaro citou um aplicativo focado em alfabetização como parte da solução encontrada pelo seu governo.

“Nós já estamos fazendo. O nosso Ministro da Educação tem um aplicativo que foi aperfeiçoado e já está há um ano em vigor, chama-se GraphoGame. Ou seja, num telefone celular se baixa o programa e a garotada fica ali. Letra A, ela aperta o A e aparece o som de A. Vai para sílabas. C e A: Ca. No passado, no tempo do Lula, a garotada levava três anos para ser alfabetizada. Agora, em nosso governo, leva seis meses.”

 

O que é e como funciona o GraphoGame

O aplicativo citado por Bolsonaro é o GraphoGame, um app finlandês que foi adaptado para a língua portuguesa por pesquisadores do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul (InsCer) da PUC-RS para ser utilizado em escolas brasileiras.

O jogo começa com exercícios que trabalham a associação entre letras e sons da linguagem. Passando de nível, os exercícios ficam mais difíceis, trabalhando sons de sílabas e de palavras inteiras.

O Ministério da Educação (MEC) recomenda o GraphoGame Brasil para todos os estudantes do 1º e do 2º ano do ensino fundamental e para aqueles com defasagens no aprendizado da leitura.

Mas em nota à BBC News Brasil, a PUCRS disse que o GraphoGame não é um app de alfabetização — como sugeriu Bolsonaro — e sim apenas uma ferramenta de apoio ao ensino.

“A universidade explica que o aplicativo pode ser uma ferramenta de apoio, mas que sozinho não é capaz de alfabetizar. Este não foi e não é o objetivo da iniciativa e dos pesquisadores em nenhum momento. Para uma criança ser alfabetizada ela precisa de instrução sistemática e consistente, precisa de vivências e sem dúvida alguma do apoio da Escola e especialmente de educadores”, afirma a nota da PUCRS.

De acordo com a universidade, foram investidos R$ 100,5 mil pelo MEC para a adaptação do jogo feita pelo InsCer.

A BBC News Brasil tentou contato com Augusto Buchweitz, o principal pesquisador responsável pela adaptação do aplicativo para o Brasil, que não tem mais vínculo com a PUCRS. Ele disse preferir não se manifestar.

 

Alfabetização em seis meses?

Dados do Ideb (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) mostram que, entre 2019 e 2021, o percentual de crianças do 2º ano que não sabem ler e escrever mais que dobrou: passou de 15% para 34%, de acordo com os dados do Saeb (Sistema de Avaliação da Educação Básica).

“É importante contextualizar o GraphoGame nesse cenário”, diz Maria Alice Junqueira, coordenadora de projetos da ONG Cenpec, que trabalha com educação pública no país.

Junqueira rechaça a ideia de que o app seja efetivo para alfabetizar crianças em seis meses. “Se o aplicativo, que começou a rodar 2020, tivesse esse poder, os índices estariam melhores, e não piores”, diz Junqueira.

Outro ponto levantado pela especialista é que o aplicativo precisa de internet para ser baixado — e depois pode ser usado de forma offline. Mas muitas crianças de famílias mais pobres sequer possuem celular ou computador.

“É um problema pensarmos que a solução é uma única ferramenta, como o GraphoGame.”

Para a especialista do Cenpec, as escolas precisam avaliar quem são os alunos com dificuldade na alfabetização e oferecer reforços com materiais que já existem nas escolas.

 

Falsa modernização

Para a professora da Escola de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em alfabetização Silvia Gasparian Colello, o jogo é uma “prova do quanto o Bolsonaro está mal assessorado na Educação”.

Segundo ela, por associar a alfabetização a um game, o grande público tem a falsa impressão de modernização do ensino, quando na verdade o governo estaria reproduzindo práticas de ensino já superadas.

“O jogo talvez fosse eficiente para alfabetizar papagaios, mas certamente não para ensinar sujeitos pensantes”, diz a professora.

“É chocante constatar que em pleno século 20 a alfabetização seja vista apenas como correspondência mecânica entre fonemas e grafemas. É um pressuposto que aniquila o que a língua tem de mais precioso — que é a possibilidade de comunicação. Dessa forma, ensinar a língua escrita vem na contramão do direito das crianças se expressarem e interagirem com a sociedade.”

No jogo de associação mnemônica, em sua análise, o usuáio não tem oportunidade de se encantar com a língua ou de formar o hábito da leitura. Isso só acontece se a alfabetização acontece a partir da literatura e do aprendizado com contexto.

“Tira a oportunidade, por exemplo, de fazer a criança escrever uma cartinha pro coelho da Páscoa e contar a sua própria história.”

Colello avalia que as recompensas do jogo, como o ganho de estrelas, pouco servem para a aprendizagem, e considera que o cenário do aplicativo, marcado por montanhas e tiros de canhão nas letras, ficam distantes do dia a dia dos estudantes.

 

O que dizem os estudos

Estudos internacionais, como um feito com estudantes ingleses, mostram benefícios no aprendizado de reconhecimento de fonemas e habilidades de ortografia com o uso do aplicativo.

No entanto, os autores apontam que “a alfabetização é um empreendimento social e, portanto, o aplicativo idealmente precisa ser usado em conjunto com atividades de leitura ou nos lares para que todo o seu potencial seja realizado”.

A maioria das evidências coletadas foi de alunos com dificuldade de aprendizagem, como aqueles que têm dislexia.

Outra pesquisa, focada no aprendizado em língua portuguesa, mostra que alunos pobres obtiveram resultados inferiores aos alunos ricos — reforçando que atividades complementares, como treinamento feito pela família em casa são essenciais para bons resultados.

É também o que recomenda o MEC no manual de uso: “Lembrem-se, o GraphoGame funciona melhor quando um adulto interage com a criança, ou quando integrado a atividades de literacia”.

Em outra parte do documento, o MEC acrescenta: “Estudos mais recentes mostram que o GraphoGame é ainda mais eficaz quando utilizado em conjunto com atividades de sala de aula, com um programa de alfabetização e com um currículo rico em linguagem oral”.

Para ler na íntegra, acesse: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63294813

 

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A pedagoga Silvia Colello, que participa da reportagem, é autora de vários livros da Summus sobre alfabetização. Conheça alguns a seguir:

 

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ALFABETIZAÇÃO
O quê, por quê e como

Admitindo que a alfabetização, além de legítima meta pedagógica, é decisiva para a constituição do ser humano, o tema merece ser considerado por meio de abordagem multifacetada – o mosaico de fundamentação, conceitos, diretrizes, processos de aprendizagem, práticas de ensino e compreensão dos mecanismos de fracasso escolar. Com base nos apelos de nossa sociedade e nos desafios para a reversão dos quadros de analfabetismo, analfabetismo funcional e baixo letramento, esta obra pretende contribuir para os debates educacionais, apontando possíveis articulações entre “o que se ensina quando se ensina a ler e escrever”, “por que se ensina a ler e escrever” e “como se ensina a ler e escrever”. Na dialética entre teoria e prática, o livro assume o propósito de promover a compreensão para que melhor se possa ensinar. Nessa perspectiva, constitui-se como uma coletânea de textos que, mesmo independentes, “dialogam” recursivamente entre si e, ainda, marcam uma posição no atual cenário de incertezas e diversidade de proposições. Ao final, material complementar recheado de vídeos sobre a temática de cada capítulo.

 

 

A ESCOLA E A PRODUÇÃO TEXTUAL
Práticas interativas e tecnológicas

Como as crianças entendem o papel da escola? Como o vínculo que estabelecem com ela afeta a aprendizagem? Por que os alunos têm tanta dificuldade de se alfabetizar? Como compreender o ensino da escrita no mundo tecnológico? Em um momento de tantas inovações, de que forma lidar com os desafios do ensino e renovar as práticas pedagógicas?Na busca de um projeto educativo compatível com as demandas de nosso tempo e o perfil de nossos alunos, Silvia Colello discute aqui como as condições de trabalho na escola podem interferir na produção textual, favorecendo a aprendizagem da língua. Para tanto, lança mão da escrita como resolução de problemas em práticas tecnológicas e interativas. Conhecer as muitas variáveis desse processo é, indiscutivelmente, um importante aval para a construção de uma escola renovada. Afinal, é possível transformar a leitura e a escrita em uma aventura intelectual?

 

 

A ESCOLA QUE (NÃO) ENSINA A ESCREVER

A fim de repensar as concepções acerca da língua, do ensino, da aprendizagem e das práticas pedagógicas, este livro levanta diversos questionamentos sobre a alfabetização como é praticada hoje nas escolas. Depois de analisar diversas falhas didáticas e tendências pedagógicas viciadas, a autora oferece alternativas que subsidiem a construção de uma escola que efetivamente ensine a escrever.

 

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