Como a morte de João Alberto Silveira Freitas mostra, mais uma vez, que a cordialidade brasileira não passa de uma fraude e que o preconceito racial é o elemento articulador das relações sociais no País, tentando colocar os negros numa permanente condição de dor e inferioridade. Isso precisa mudar.
Parcial de matéria de Fernando Lavieri e Vicente Vilardaga, publicada na revista IstoÉ,
em 27/11/2020.
O filósofo camaronês Achille Mbembe, formulador do conceito de necropolítica e autor do livro “Crítica da Razão Negra”, diz que a escravidão atlântica foi um inédito complexo servil que transformou as pessoas de origem africana em mercadorias. E prossegue: “Nesse sentido, a escravidão inventou o negro, uma espécie de homem-coisa, homem-metal, homem-moeda, homem plástico. Nas Américas e no Caribe, os seres humanos foram transformados, pela primeira vez na história universal, em criptas vivas do capital. O negro é o protótipo desse processo”, afirma Mbembe. No Brasil, isso é totalmente perceptível e soa mais atual do que nunca. A conversão dos negros em “homens-coisa” permanece sensível na vida cotidiana no século 21 e mostra um esforço consciente da população branca em condenar os afrodescendentes à condição de inferiores em todas as esferas da vida social e tirar-lhes humanidade, num esforço perverso de perpetuar as relações escravistas.
A morte do autônomo João Alberto Silveira Freitas, de 40 anos, espancado e asfixiado dentro de um supermercado da rede Carrefour, em Porto Alegre, por dois seguranças brancos, quinta-feira 19, véspera do feriado da Consciência Negra, é um exemplo bem acabado de que o racismo estrutural e o tratamento de pessoas como coisas está entranhado na civilização brasileira. É uma situação que se repete há séculos e não muda. “A atitude dos seguranças é a mesma dos capitães do mato”, afirma Júlio César Santos, diretor do Instituto Luiz Gama, referindo-se aos encarregados de capturar escravizados que fugiam da casa grande. “Continuamos vivendo um período de barbárie por causa do genocídio à população negra”. Para Santos, o racismo, expresso no crime contra Beto Freitas, é uma verdadeira sabotagem à democracia e um entrave para o fortalecimento do Brasil como Nação multiétnica e igualitária. Compromete seriamente, inclusive, o desenvolvimento do País. Já Elisa Larkin Nascimento, presidente do Instituto de Pesquisa e Estudos Afro-Brasileiros, uma das principais autoras da Selo Negro Edições, e viúva do intelectual e ativista Abdias do Nascimento, o racismo estrutural ergue infinitos obstáculos para as pessoas negras. “Há um genocídio dessa população”, diz.
Mortes violentas
Muito além do que maldosamente alguns brancos classificam de vitimismo, após a efetividade da abolição da escravidão no Brasil, surgiram uma série de leis, decretos, atos oficiais que impediram de fato que a população negra pudesse ascender socialmente e enfrentar o racismo. Não foi dada nenhuma condição para que os ex-escravos se reintegrassem no mundo do trabalho formal, nem um acre de terra, nem uma mula. “Isso fundamenta e estrutura o Estado brasileiro ao longo de sua história”, afirma Elisa. Os negros são alijados dos centros de poder e gestão nas empresas, nas instituições públicas, na política, na educação e em todos os outros campos da sociedade. Quando se trata de cargos de chefia ou de instâncias decisórias, eles sempre aparecem numa proporção inferior a de brancos e a de sua representatividade social. Em outra ponta, quando se vê a população miserável, presidiária ou os mortos pela violência policial, os negros são maioria absoluta. Segundo o Atlas da Violência de 2020, do Ipea, os assassinatos de pessoas negras cresceram 11,5% em 10 anos, enquanto os de não negros caíram 12,9%. Em 2018, os negros representaram mais de 75% das vítimas de homicídios. E 64% da população carcerária brasileira é composta por pessoas negras.
Em qualquer área da sociedade, os negros, que representam 56,2% da população brasileira, hoje de 212 milhões de pessoas, estão em desvantagem. Na educação, por exemplo, eles são os mais prejudicados. Sua situação é precária desde a pré-escola até o curso superior. Há no Brasil, por exemplo, 11 milhões de pessoas analfabetas e o analfabetismo entre negros é três vezes maior do que entre os brancos. Enquanto, 3,6% da população branca não sabe ler e escrever, no caso dos negros esse percentual é de 8,9%. A dificuldade de aprendizado repercute no final da formação educacional. Quando se compara a população com 25 anos ou mais que cursa o ensino superior a situação é igualmente crítica. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), referentes a 2019, indicam que a taxa de ingresso no ensino superior ainda é amplamente favorável aos brancos, apesar das políticas de cotas e de esforços recentes para diminuir a desigualdade. Entre os jovens que entram na faculdade, 53,2% são brancos e 35,4%, negros.
A situação de inferioridade numérica e de representação aparece exposta no plano político. Nas eleições municipais deste ano foram eleitos mais de 5,4 mil prefeitos e somente 32% do total ou cerca de 1,7 mil candidatos, segundo dados preliminares do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), são negros. O número é maior do que o de 2016, quando 29% dos candidatos eleitos eram pretos ou pardos. Mas ainda está longe de garantir uma representatividade adequada. No caso dos vereadores, entre os 57,6 mil eleitos, apenas 3,56 mil ou 6,16% se declaram negros. Nas capitais, um levantamento feito pelo site Gênero e Número com base em informações do site do TSE, mostra que 44% das cadeiras de vereadores serão ocupadas por negros.
O racismo estrutural se expressa principalmente no mundo do trabalho. Entre as pessoas que vivem na situação “nem nem”, que não tem trabalho e não estudam – um contigente de 5,3 milhões de brasileiros entre 18 e 25 anos, 41,5% são negros e apenas 5%, brancos. Quanto se olha para aqueles que estão em nível máximo de vulnerabilidade, abaixo da linha da pobreza, os negros são 32,9% e os brancos, 15,4%. O rendimento médio no Brasil também é desigual. Em termos gerais, a diferença entre negros e brancos é de 45%. No recorte da situação da mulher negra, na comparação com o homem branco, a disparidade chega a 70%. Um trabalhador negro ganha, em média, R$ 10,1 por hora, enquanto um branco ganha R$ 17,0 por hora. Dentro do ambiente empresarial, o racismo estrutural também está estabelecido: em cargos gerenciais os negros representam 29,9% e os brancos, 68,6%. “A sociedade nunca se levantou para tratar do problema do racismo estrutural”, afirma Maurício Rodrigues, vice-presidente de Finanças da Bayer no Brasil. “Há uma sub-representatividade do negro em diversas frentes, mas principalmente em cargos decisórios”.
Nas Forças Armadas, a situação desfavorável dos negros é evidente. No Alto Comando do Exército, por exemplo, dá para contar nos dedos de uma mão o número de negros que ascenderam ao posto de general ao longo da história. Na Força Aérea Brasileira (FAB), os efeitos do racismo estrutural também são evidentes e mostram como os negros são excluídos dos postos de comando. Segundo um estudo realizado pelo pesquisador Leandro Luiz Mikaloski Penedo, da Escola Nacional de Administração Pública (Enap), de um total de 67.901 militares da ativa na Aeronáutica, 50,2% são negros e 46,11%, brancos. Mas quando se analisa o oficialato, 67,65% são brancos e 28,84%, negros. “A comparação com a composição racial da população brasileira revela discrepâncias ainda maiores”, escreve Penedo. “A porcentagem de oficiais brancos é 24,55% maior do que a porcentagem de brancos da população brasileira; enquanto a porcentagem de oficiais negros é 26,96% menor que a porcentagem de negros da população”.
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Para ler a matéria na íntegra, acesse: https://istoe.com.br/racismo-estrutural/
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Elisa Larkin Nascimento, uma das participantes da matéria, é autora e organizadora de várias obras da Selo Negro Edições, além de coautora de uma obra da Ágora. Conheça-as abaixo.
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O SORTILÉGIO DA COR
Identidade, raça e gênero no Brasil
Autora: Elisa Larkin Nascimento
SELO NEGRO EDIÇÕES
Livro que se insere na nova corrente de reflexões sobre o negro brasileiro. Colocando o problema da identidade no centro de sua análise, a autora mostra que a identidade não é apenas um conceito teórico, mas se manifesta concretamente na realidade social. O livro descreve a recusa dos afrodescendentes em ver sua identidade diluída em uma homogeneidade cultural ditada pela branquitude e pelo universalismo europeu.
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A MATRIZ AFRICANA NO MUNDO
Coleção Sankofa – Volume 1
Organizadora: Elisa Larkin Nascimento
Autores: Anani Dzidzienyo, Carlos Moore, Elisa Larkin Nascimento, Francisco Romão de Oliveira, Gizêlda Melo do Nascimento, Ismael Diogo da Silva, Kabengele Munanga, Michael Hamenoo
SELO NEGRO EDIÇÕES
Neste volume ilustrado, Elisa Larkin Nascimento faz um resumo da pesquisa pioneira de Cheikh Anta Diop e seus seguidores, que comprovam a influência da matriz negro-africana em todo o mundo, desde a Antigüidade até os tempos modernos. O escritor ganense Michael Hamenoo, bem como os angolanos Francisco Romão de Oliveira e Ismael Diogo da Silva, contribuem com análises do legado colonial e da África contemporânea. Elisa Larkin Nascimento e Carlos Moore Wedderburn apresentam uma visão geral das lutas pan-africanas na África e na diáspora americana. Anani Dzidzienyo aborda a questão das relações internacionais entre África e diáspora, focalizando o Brasil.
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CULTURA EM MOVIMENTO
Matrizes africanas e ativismo negro no Brasil – Coleção Sankofa – Volume 2
Organizadora: Elisa Larkin Nascimento
Autores: Beatriz Nascimento, Carlos Moore, Elisa Larkin Nascimento, Joel Rufino dos Santos, Nei Lopes, Piedade Marques, Silvany Euclênio, Vera Regina Triumpho
SELO NEGRO EDIÇÕES
Tratando do legado cultural e da tradição de resistência dos descendentes de africanos no Brasil, este volume reúne ensaios e depoimentos sobre várias dimensões e aspectos. Nei Lopes e Beatriz Nascimento trazem uma perspectiva sobre o legado dos ancestrais bantos e malês; Elisa Larkin Nascimento, Joel Rufino e Abdias Nascimento, assinando pelo Conselho Deliberativo do Memorial Zumbi, esboçam uma pequena história das lutas afro-brasileiras do século XX. A questão da educação no Brasil como tema fundamental da vida e da luta dos afro-descendentes é tema de relatórios de fóruns de educadores que a abordam no seu aspecto teórico e prático. Três educadoras – Vera Regina Triumpho, Silvany Euclêncio e Piedade Marques – trazem depoimentos ricos sobre a sua experiência com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, modificada pela Lei nº 10.639 de 2003.
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GUERREIRAS DE NATUREZA
Mulher negra, religiosidade e ambiente – Coleção Sankofa – Volume 3
Organizadora: Elisa Larkin Nascimento
Autores: Aderbal Moreira Ashogun, Carlos Moore, Clarice Novaes da Mota, Cristiane Cury, Dandara, Elisa Larkin Nascimento, Gizêlda Melo do Nascimento, Helena Theodoro, Hédio Silva Jr., José Flávio Pessoa de Barros, Lélia Gonzalez, Maria Lina Leão Teixeira, Mirian Goldenberg, Mãe Beata de Yemonjá, Nei Lopes, Sueli Carneiro
SELO NEGRO EDIÇÕES
A mulher negra conquistou seu espaço na sociedade por meio de grandes lutas, testemunhadas neste volume por lideranças e pensadoras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Hédio Silva Jr. e Helena Theodoro. A tradição religiosa afro-brasileira valoriza o papel da mulher e reúne uma sabedoria guardada por ela como protagonista da vida de sua comunidade. A tradição dos orixás cultiva uma rica e dinâmica relação com a natureza, antecedendo por milênios a repentina preocupação do Ocidente atual sobre o meio ambiente. Com apresentação de Mãe Beata de Yemonjá e ensaios de Dandara, Nei Lopes e Aderbal Moreira Axogum, entre outros, este volume explora as diversas implicações dessa tradição para a interação do ser humano com as forças da natureza. No processo, elucida várias dimensões do impacto negativo da intolerância religiosa na sociedade contemporânea.
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AFROCENTRICIDADE
Uma abordagem epistemológica inovadora – Coleção Sankofa – Volume 4
Organizadora: Elisa Larkin Nascimento
Autores: Abdias Nascimento, Ama Mazama, Asa G. Hilliard III, Carlos Moore, Charles S. Finch III, Elisa Larkin Nascimento, Katherine Olukemi Bankole, Mark Christian, Maulana Karenga, Mekada Graham, Molefi Kete Asante, Muniz Sodré, Reiland Rabaka, Vânia Maria da Silva Bonfim, Wade W. Nobles
SELO NEGRO EDIÇÕES
Esta antologia reúne textos de estudiosos e ativistas da abordagem afrocentrada. Apresenta a postura básica dessa linha de pensamento e seus fundamentos teóricos, bem como reflexões e levantamentos sobre sua presença no Brasil, acompanhados de trabalhos sobre temas específicos como: psicologia, a mulher afrodescendente, assistência social e educação multicultural.
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PSICODRAMA E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Diálogos e reflexões
Organizadores: Maria Célia Malaquias
Autores: Adriana Cristina Dellagiustina, Dalmiro M. Bustos, Denise Nonoya, Elisa Larkin Nascimento, Ermelinda Marçal, Flavio Carrança, Lúcio Guilherme Ferracini, Maria Célia Malaquias, Maria da Penha Nery, Rosa Cukier, Sergio Perazzo
EDITORA ÁGORA
Apesar da grande produção bibliográfica dos psicodramatistas brasileiros nas últimas décadas, o tema das relações étnico-raciais é extremamente raro tanto em livros quanto em artigos acadêmicos. A fim de preencher essa lacuna, Maria Célia Malaquias reúne neste volume profissionais renomados para discutir assuntos como racismo, protagonismo negro, representatividade, ancestralidade e inclusão. De sua posição de mulher negra, psicóloga e psicodramatista, Malaquias leva o leitor a refletir sobre a desigualdade racial no Brasil e sobre os caminhos e instrumentos que podem ajudar a debelar essa chaga que nos assola há tantos séculos.