Homofobia já era institucionalizada na Alemanha antes dos nazistas, mas radicalizou-se durante o Terceiro Reich e sobreviveu ao fim da Segunda Guerra Mundial. Só muito recentemente o silêncio sobre os homossexuais vítimas do nazismo tem sido mais conhecido e debatido na Europa
Artigo de Mateus Henrique Siqueira Gonçalves, publicado originalmente no portal Café História,
em 16/05/2022
Desde que chegaram ao poder na Alemanha, em janeiro de 1933, os nazistas esforçaram-se para erradicar quaisquer expressões da homossexualidade (e outras dissidências de gênero e sexualidades não binárias e heterossexuais) da vida pública alemã. Os espaços frequentados por homossexuais foram recorrentemente depredados, fechados e banidos. Foi o que aconteceu com danceterias, clubes, institutos sociais, jornais, editoras e museus. Negócios e demais empreendimentos privados geridos por homossexuais também foram afetados, bem como suas organizações e associações, que foram dissolvidas e seus membros empurrados à clandestinidade.
A prisão do jovem de origem holandesa Marinus van der Lubbe, em fevereiro de 1933, é relevadora da homofobia nazista. Lubbe foi preso em flagrante, acusado de ter incendiado o Reichstag. Rapidamente, sua suposta homossexualidade e ideologia comunista foram exploradas por políticos conservadores, pela imprensa alemã de ultradireita, por fascistas e/ou simpatizantes do Partido Nazista. Lubbe e outros quatro indivíduos foram a julgamento. Porém, somente van der Lubbe foi condenado à morte por alta traição.
A homofobia, como pretexto de escândalo político e escárnio social, estava amplamente disseminada na Europa do século XX. Na Itália fascista, em 1938, os homossexuais, alguns exilados da Alemanha e da Áustria, foram aprisionados em uma ilha no Mar Adriático, na prisão Isole Tremiti. Na União Soviética, a tipificação da homossexualidade como crime foi reintroduzida no código penal em 1934, enviando os condenados para um campo de trabalhos forçados na Sibéria por 5 anos, o Gulag. A Alemanha, no entanto, parece ter ido mais longe na repressão.
Progressivamente, o estado alemão adotou medidas radicais contra os homossexuais até que um nível sistêmico de perseguição fosse concretizado. Exemplo disso é a inclusão de homossexuais nos programas de eugenia ainda na primeira metade dos nos anos 1930. Em um primeiro momento, os nazistas acreditaram que era possível reverter a homossexualidade através de “tratamentos científicos”, como administração de hormônios. Ao constatar o fracasso dessa iniciativa, no entanto, optaram por outras formas de aniquilar o “desejo homossexual”, como a prática do estrupo corretivo dentro dos campos de concentração (quando obrigavam homens gays a estuprarem mulheres) e, por fim, a castração química.
Em outubro de 1934, a Gestapo criou uma seção própria para se encarregar somente da questão homossexual. Heinrich Himmler, ideólogo da homofobia do Terceiro Reich, inflou os membros da SS e, posteriormente, toda a sociedade através de uma retórica violenta contrária aos homossexuais. Caracterizava-os como covardes, mentirosos, pervertidos e degenerados, corruptos morais e raciais do povo ariano. Em outubro de 1936, sob seu comando, o Escritório Central do Reich para o Combate à Homossexualidade e ao Aborto foi criado com o intuito de rastrear e controlar os suspeitos e condenados por homossexualidade a partir de dados obtidos dos seus respectivos parceiros sexuais. A máquina estatal voltou-se contra os homossexuais a partir de vários órgãos de repressão e vigilância, como a Kripo (polícia criminal) e a própria Gestapo (polícia secreta do estado), que logo se tornaria o símbolo da perseguição aos homossexuais.
A perseguição às mulheres lésbicas também é complexa, mas distinta daquela aplicada aos homens homossexuais. Os nazistas acreditavam que a lesbianidade poderia ser contida e/ou revertida com a aplicação radical das normas de comportamento sociais que melhor se adequavam ao padrão de exigência da sociedade ariana nazificada. Isto é, a preservação da estrutura social heterossexista e patriarcal ajudaria a promover a estabilidade do regime.
O pânico instaurado dentro da comunidade surtiu o efeito esperado. As mulheres lésbicas sentiram-se pressionadas a aderirem padrões de gênero tradicionais, desde as roupas – afastando-se da estética masculina – até o casamento heterossexual compulsório, romperam relações com a comunidades e algumas chegaram a mudar de endereço.
As associações de mulheres foram fechadas e banidas, o que impediu contestações do lugar e da ocupação da mulher. Os nazistas moldaram seus espaços de atividade e relações no âmbito público e privado. Àquelas que permaneceram abertas estavam voltadas às questões heterossexistas e patriarcais, articuladas, organizadas e lideradas por homens do Terceiro Reich. A preocupação dessas entidades era instruir a “correta” função da mulher na sociedade nazificada: contrair matrimônio, procriar e zelar pela família.
É difícil estimar quantas mulheres foram incriminadas como lésbicas pelo Terceiro Reich; quantas, de fato, responderam processos criminais ou foram enviadas aos campos de concentração sob o argumento da lesbianidade. As documentações sobre elas são escassas, incompletas ou suspeitas. Apesar das discussões sobre incluí-las no código penal alemão, a não criminalização oficial da lesbianidade é um dos fatores que atrapalham o mapeamento e a historicização desse passado.
Em relação aos homens, atualmente, estima-se que cerca de 100 mil deles foram encarcerados e deportados por homossexualidade. 50 mil foram condenados à prisão, dos quais de 5 mil e 10 mil foram enviados para campos de concentração. Essa política foi executada a partir de um dispositivo da lei existente desde o final do século XIX, em 1871, na primeira versão do código penal germânico: o Parágrafo 175.
O Parágrafo 175
O Parágrafo 175 criminalizava a homossexualidade masculina, atribuindo-a a um sentido antinatural e animalesco, equiparando o sexo entre homens com a prática da zoofilia. Dessa maneira, o código penal previa perda de direitos políticos e o encarceramento daqueles que fossem flagrados pela lei. Em 1935, Hitler reformulou o Parágrafo 175 para que a perseguição, a deportação, o aprisionamento e o extermínio dos homossexuais fossem sistematicamente posto em prática.
Por mais de 120 anos, a lei anti-homossexuais continuou vigente e sendo executada no território alemão. Mesmo no mundo pós-guerra, e depois do processo de desnazificação da Europa, a República Federal da Alemanha Ocidental preservou a versão mais rigorosa do Parágrafo 175, a mesma reestruturada por Hitler, por um período de 20 anos. Do lado Oriental da Alemanha, a homossexualidade igualmente permaneceu criminalizada. Somente em 1968 deram fim à lei com a criação de um novo código penal. Entretanto, na Alemanha como um todo, os resquícios do Parágrafo foram perpetrados até 1994 quando finalmente extirparam da legislação toda e qualquer forma de perseguição aos homens homossexuais.
No mundo alemão pré-ascensão nazista, ao longo dos anos, o Parágrafo 175 foi ficando cada vez menos rigoroso na execução da lei ao passo que a vida e a cultura homossexual prosperavam. A República de Weimar pode ser caracterizada como o ápice dessa liberalização de costumes e práticas. Sob a experiência da República, eram raros os sujeitos processados e presos por conta do Parágrafo. Os poucos que eram flagrados pela lei acabavam “apenas” advertidos sobre suas condutas “imorais” e liberados após o pagamento de multas. Neste período, o movimento homossexual na luta por direitos, visibilidade, conscientização social, cultural e acadêmica, liberalização e reinvindicações para a extinção da lei anti-homossexuais na Europa era encabeçado por Magnus Hirschfeld e outros ativistas.
Hirschfeld era homossexual, judeu de família abastada, médico especializado em sexologia, e vinha desde o século XIX empreendendo esforços para que o estado e a sociedade descriminalizassem e despatologizassem a condição homossexual. O seu legado era imenso e revolucionário para o período. Hirschfeld fundou o Instituto para a Ciência Sexual em julho de 1919 no centro de Berlim. Seu projeto se tornou famoso, atraiu pesquisadores, intelectuais e homossexuais de várias partes do mundo. O local contava com uma biblioteca que possuía 12 mil publicações e 35 mil fotografias acerca da vivência homossexual.
A fama e prestígio internacionais de Hirschfeld, contudo, não foram suficientes para protegê-lo. Sua instituição foi invadida, destruída e fechada pelos nazistas em maio de 1933, Hirschfeld escapou da prisão e muito provavelmente da morte pois se encontrava no exterior a trabalho. Ele jamais retornou para a Alemanha. Fixando residência na França, sua nacionalidade alemã foi cassada em 1934 e no ano seguinte faleceu em decorrência de um ataque cardíaco. A própria propaganda nazista obliterou a memória do pesquisador da causa homossexual por muitos anos, seu resgate só foi possível depois dos eventos de Stonewall, nos Estados Unidos, em 1969.
Longo silêncio e luta por direitos
O resultado da política nazista aos homossexuais na Alemanha e nos países ocupados e anexados por ela, a contar como exemplo a Áustria e a França, foi a instauração de um silêncio de décadas quanto aos abusos e os crimes cometidos pelos nazistas. Os homossexuais permaneceram enclausurados dentro de armários metafóricos cuja homofobia legalizada do estado os impedia de testemunhar. Criminalizados pela lei, mal vistos pela sociedade, os homossexuais durante décadas ficaram coibidos de se organizarem política e socialmente em torno de suas pautas identitárias, o que fez com que eles não reivindicassem reparações oficiais durante muito tempo.
Esse cenário de ostracismo começou a mudar no início dos anos 1970 e durante toda a década de 1980 e 1990, quando os homossexuais das duas gerações seguintes ao fim da Segunda Guerra Mundial pressionaram suas respectivas sociedades e estados por liberalização, visibilidade e direitos.
Esse cenário de ostracismo começou a mudar no início dos anos 1970 e durante toda a década de 1980 e 1990, quando os homossexuais das duas gerações seguintes ao fim da Segunda Guerra Mundial pressionaram suas respectivas sociedades e estados por liberalização, visibilidade e direitos.
A questão da AIDS foi fundamental para que a comunidade ativista de homens homossexuais, mulheres lésbicas e demais pessoas transexuais e transgêneros pudessem revisitar um passado catastrófico e traumático aos sujeitos queer com o intuito de estabelecerem estratégias de luta contra a homolesbotransfobia. É durante esse processo que o triângulo rosa, outrora insígnia de extermínio e de vergonha homossexual, costurado à roupa dos homossexuais presos em campos de concentração, é reconfigurado como distintivo de orgulho da causa. Era preciso que se recuperasse uma história pregressa de criminalização, marginalização social, perseguição política e estatal, para que uma nova geração de homossexuais tivesse os meios e as retóricas traumáticas e memoriais próprias para lidarem com uma outra onda de repressão sexual e identitária.
Esse longo processo de luta por direitos civis e pela memória teve muitos protagonistas. Dois deles estiveram no centro da perseguição nazista aos homossexuais, os triângulos rosa Pierre Seel e Rudolf Brazda. Ambos, mais de 50 anos depois da guerra, conseguiram testemunhar através de suas escritas de si, uma autobiografia (“Eu, Pierre Seel, deportado homossexual”) e uma biografia (“Triângulo rosa: um homossexual no campo de concentração nazista”). Isso só foi possível pela rede de sustentação muito bem estruturada de homens homossexuais que os cercaram, que viram em seus depoimentos um valor incomensurável, dizia respeito aos que não puderam testemunhar e também àqueles que sequer estiveram conscientes do que o nazismo foi capaz de fazer aos considerados “diferentes”.
Para ler o artigo na íntegra, acesse: https://www.cafehistoria.com.br/a-perseguicao-nazista-aos-homossexuais-na-europa/
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Conheça o livro Triângulo rosa (Mescla Editorial), mencionado no artigo:
TRIÂNGULO ROSA
Um homossexual no campo de concentração nazista
Autores: Jean-Luc Schwab, Rudolf Brazda
MESCLA EDITORIAL
Identificados como “triângulos-rosa”, milhares de homossexuais foram enviados para campos de concentração pelo regime de Hitler. Rudolf Brazda, que recebeu a matrícula 7952, ficou preso em Buchenwald por dois anos. Conhecido como o último sobrevivente gay do campo, faleceu aos 98 anos, pouco depois de receber a medalha da Legião de Honra francesa, honraria suprema daquele país. No livro, ele faz um relato ímpar, sustentado por um rigoroso trabalho de pesquisa histórica e marcado pela dor e pela esperança de quem sobreviveu aos horrores do nazismo.