…………..Reprodução da coluna de Marcelo Coelho, publicada na Folha de S. Paulo, em 12/09/2018.
Enquanto o machismo agride as mulheres, a masculinidade oprime os homens
Acontece uma vez por ano, mais ou menos. Depois de uma noite calma e bem dormida, ele se levanta com alguma pressa, inclina-se para pegar as roupas que estavam jogadas no chão, e a casa inteira ouvirá seu grito.
Uma mão invisível parece ter trincado sua coluna vertebral como se fosse um palito de fósforo. O efeito seria o de um relâmpago, se um relâmpago tivesse o peso de um caminhão descendo a ladeira sem breque.
Impossível mudar de lugar. A mera ideia de tirar um pé do chão é descartada com terror. É preciso esperar alguns minutos para ter coragem de encetar qualquer movimento.
Vários dias irão seguir-se, com o relâmpago caindo várias vezes no mesmo lugar, ao menor descuido. Aos poucos, com a terapia adequada (mas qual será?), tudo irá retornando ao normal.
Depois de uma década ou duas dessa rotina, é seguro afirmar que a pior crise foi a primeira; com o tempo, todo mundo aprende a evitar os movimentos e posturas de maior perigo. Mas ninguém se acostuma. A família, muito menos.
Eis, ao pé da cama, encolhido como uma múmia de Machu Picchu, o paciente em plena crise de lombalgia. Chamemo-lo de Teixeira.
Ele acabou de gritar. “O que foi, Teixeira?”, pergunta a mulher. “Não foi nada”, responde ele, de mau humor.
Ela aparece na porta. “Coluna de novo?”. Conforme a personalidade de Teixeira, a resposta pode variar. Um sorriso: “É, mas logo passa”. Um sarcasmo: “O que acha?”. Palavra nenhuma: “Grnf”.
Não faz muita diferença, pois a mulher de Teixeira não irá alterar suas reações. “Quer que chame um médico?”
Não, Teixeira não quer um médico. Já foi a vários, nada adianta. Acupuntura, meditação, hidroginástica, homeopatia, eletrochoque, Teixeira já foi a tudo.
“Quer que eu faça uma massagem, querido?”
Não, ele não quer.
“Um chazinho?”
Teixeira também não quer.
A esposa fica mais angustiada. Ela precisa fazer alguma coisa pelo Teixeira. Um colete ortopédico? Uma bengala? Um copo d’água? Um cobertor?
Ele acabará aceitando alguma coisa, de preferência a mais neutra, a mais inócua. Por que essa opção pela ineficiência?
A razão é simples: ele irá curar-se sozinho. Não pode admitir que o ajudaram nisso. Não pode nem mesmo mostrar que precisa de ajuda.
Teixeira aguenta. Teixeira não está sentindo nada. A coisa com Teixeira não tem seriedade nenhuma.
Nenhuma mulher poderá ajudar Teixeira. Pois Teixeira, ora essa, é homem.
Escrevo estas linhas não só por me encontrar em plena crise lombar, mas porque um livro da psicanalista Malvina Muszkat, que recebi recentemente, destaca com muita sensibilidade o drama —e o ridículo— da masculinidade contemporânea.
Na capa de “O Homem Subjugado” (ed. Summus), a cartunista Laerte resume a melancolia da situação. Ao sair de uma enorme armadura de cavaleiro medieval, um homenzinho põe a mão no queixo, sem saber o que pensar.
Aquela carapaça de ataque e de defesa, do tamanho de um tanque de guerra, é pesada demais para o homenzinho. Terá ele coragem de sair, nu, a caminho de uma vida mais pacífica e de um convívio mais aberto com os seus semelhantes?
O livro de Malvina Muszkat acerta muito ao diagnosticar vários comportamentos “sem sentido” (isto é, historicamente condicionados) do macho comum. Sua resistência a falar dos próprios medos e de seus sentimentos, por exemplo. De onde vem esse silêncio?
A clássica incapacidade masculina para pedir informações no trânsito, provavelmente, tem a mesma origem.
Também faz parte da “masculinidade” (nem digo do “machismo”) o compromisso de não chorar, de não ter crises de nervos, e —em alguns casos— de nem mesmo se mostrar em dúvida ou capaz de mudar de ideia.
“O Homem Subjugado” toma a defesa dos homens contra tudo o que o machismo e o sistema de gênero fizeram, ao longo de séculos, para sufocar sua sensibilidade e negar seu sofrimento.
Seria importante tentar uma abordagem mais sistemática e detalhada do tema, algo que não cabe no espírito ensaístico do livro.
Do ponto de vista mais estritamente psicanalítico, a autora destaca o momento, dramático como poucos, em que o menino se vê levado a rejeitar a mãe (seus cuidados, suas preocupações, seus carinhos) para se tornar “homem”. A “mãe-fada”, diz ela, se transforma em “mãe-bruxa”.
Coitada! É o momento em que seu principezinho se transforma em ogro. Com sorte, ele será mais um sr. Teixeira.
Marcelo Coelho
Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances “Jantando com Melvin” e “Noturno”. É mestre em sociologia pela USP.
Para ler na íntegra, acesse (para assinantes ou cadastrados): https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelocoelho/2018/09/ninguem-pode-ajudar-o-sr-teixeira.shtml
Conheça o livro:
O HOMEM SUBJUGADO
O dilema das masculinidades no mundo contemporâneo
Autora: Malvina E. Muszkat
SUMMUS EDITORIAL
Neste livro, a autora Malvina Muszkat propõe que se repense o fenômeno da violência sob a perspectiva da subjetividade masculina na dinâmica dos relacionamentos, de forma a buscar maneiras mais eficientes de se promover o dialogo e evitar o confronto. Transitando por áreas como antropologia, sociologia, mitologia e psicanálise, Malvina mostra como a imagem da masculinidade foi construída ao longo dos séculos e de que forma os homens foram proibidos de demonstrar seus medos e fraquezas.
Talvez seja possível criar homens com comportamentos diferentes dos usualmente atribuídos a eles em nossa sociedade. Se não há apenas uma forma de ser mulher, por que haveria apenas uma forma de ser homem?