Implementação de lei que tornou obrigatória a temática no currículo é irregular entre estados e municípios
Matéria de Angela Pinho, publicada na Folha de S. Paulo,
em 19/11/2019.
Eles à noite ganham vida, mandam cartas para as crianças e, no final do ano, saem de férias para voltar com novos objetos.
Os bonecos da família Abayomi estão no centro do trabalho pedagógico da Escola Municipal Nelson Mandela, no Limão (zona norte de SP), que atende crianças de 4 a 6 anos. O pai, Azizi, é um príncipe africano. A mãe, Sofia, é sua mulher e branca. O casal tem dois filhos miscigenados, um de cor mais clara e outro de uma mais escura.
A partir da história deles, construída em conjunto com as crianças, a escola aborda diversos temas relacionados às questões étnico-raciais, como o racismo, a explicação biológica para a diferença de cor da pele e outras.
A escola é uma das que transformaram seu currículo desde a sanção da lei que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura afrobrasileira. Dezesseis anos após a legislação entrar em vigor, a implementação da medida ainda é irregular pelo país. As iniciativas existentes, porém, têm cada vez mais tentado mostrar uma história do negro que vai muito além da escravidão.
Ao analisar os planos de educação de todos os estados e de uma amostra de municípios do país para uma publicação do Conselho Nacional de Educação (CNE) de 2018, a cientista social Edilene Machado Pereira, doutora pela Unesp (Universidade Estadual Paulista), constatou que os planos estaduais, em regra, contemplam o previsto na lei, com ações que viabilizem a efetiva implementação, como capacitação de professores e produção de material didático.
Nos planos municipais, porém, muitas vezes há menção à lei, mas sem indicação de ações que a tornem efetiva. Ela observou ainda que muitos dos documentos, tanto no âmbito estadual como municipal, têm redação semelhante.
Curiosamente, entre as regiões analisadas, destacou-se a Sul, que tem a menor proporção de população negra, com uma série de ações.
Para Ivan Siqueira, presidente da Câmara de Educação Básica do Ministério da Educação, isso se deve à consolidação do quadro de técnicos das secretarias de Educação dessa região.
“Muitos estados e municípios colocaram a lei no currículo, mas quando se vai ver o que de fato acontece, verifica-se que, em muitos, é letra morta”, afirma. “O país avançou nesse sentido, mas é preciso fazer mais.”
Doutora em educação pela USP e consultora do Ceert (Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades), Waldete Tristão corrobora a afirmação. Ela trabalha como formadora de educadores nessa temática. “Ainda nos surpreendemos ao chegar em instituições e secretarias e ver que, para muitos, esse é um assunto novo”, diz.
Nas escolas onde a lei saiu no papel, consolida-se cada vez mais a ideia de que falar em história e cultura afrobrasileira é ir muito além do período da escravidão, e enfatizar não só a opressão, mas também a resistência dos negros.
É o que ocorre na Nelson Mandela, que decidiu adotar esse nome por sugestão da própria comunidade escolar após um episódio traumático. Depois de começar a priorizar o tema, o muro do colégio amanheceu com uma pichação com uma suástica e a seguinte inscrição: “Vamos cuidar do futuro de nossas crianças brancas”.
A partir do episódio, em 2011, a escola decidiu aprofundar o trabalho, que todo ano é desenvolvido a partir de um tema.
Neste, cada sala ganhou o nome de uma mulher negra, como a cantora Dona Ivone Lara, a artista Lia de Itamaracá e a guerreira Dandara, mulher de Zumbi dos Palmares. As crianças pesquisam sobre elas e, a partir das descobertas, aparecem com perguntas, que vão do motivo de a cor da pele ser diferente de pessoa para pessoa e de por que algumas das homenageadas foram discriminadas. No segundo semestre, buscam saber mais sobre a própria história. Os pais também participam de muitas das atividades.
Como resultado, diz a coordenadora Marina Basques Masella, famílias que não se viam como negras passam a se reconhecer, e as crianças desenvolvem vocabulário para nomear as coisas em geral, e o racismo em particular, além de reconhecerem suas características físicas como referenciais de beleza, o que não acontecia antes para as negras.
Em vigor desde 2018, o currículo da cidade de São Paulo prevê que as crianças tenham contato com brinquedos e manifestações artísticas de origem africana ou afrobrasileira nas primeiras séries do ensino fundamental. Nas posteriores, o tema entra em cena em conteúdos de história e geografia, entre outras disciplinas.
Norteadora dos currículos das redes de ensino, a Base Nacional Comum Curricular também prevê a abordagem de cultura africana e da história do continente antes, durante e depois da escravidão.
A preocupação em ampliar o foco está presente também no ensino superior, que forma os futuros professores.
A tendência é privilegiar cada vez mais os atores africanos ao contar a história do continente, levando-se em conta a sua enorme heteogeneidade, diz Leila Leite Hernandez, professora de história da África na USP. Isso significa dizer quem eram os africanos, de onde vieram, o que faziam etc.
Ela explica que, ao se falar da servidão, há uma ênfase crescente na resistência dos negros, tanto na forma de rebeliões como em outras, como o trabalho lento e as fugas para o interior.
A nova abordagem abriu espaço para que as novas gerações aprendam na escola episódios como a Revolta dos Malês, levante de escravos muçulmanos na Bahia ocorrido em 1835.
Apesar dos avanços, Leila avalia que ainda é preciso mais. Na USP, pioneira na abordagem do tema no curso de história, a África é tema de apenas um semestre de disciplina obrigatória. E em outros espaços, nem isso.
“Em alguns lugares, a história da África continua sendo ensinada pelo marco da escravidão, que conta a história pela metade. É um problema tanto do ponto de vista da historiografia como da valorização da criança negra.”
Se conhecer o que passou é fundamental, ainda não é o suficiente, dizem educadores que trabalham com o tema.
“Não podemos nos ater ao passado. É preciso entender qual o legado da história dos povos africanos no Brasil nas relações cotidianas”, diz Manuelita Falcão Brito, superintendente de educação básica da Secretaria da Educação da Bahia. Por exemplo, compreender a relação entre escravidão e racismo e desigualdade.
O estado trabalha com o tema de forma transversal, com prioridade à formação de professores. Iniciativas das próprias escolas também são incentivadas.
Na rede particular, a prioridade à temática varia, ainda que a abordagem seja obrigatória, uma vez que está na BNCC.
Na região central de São Paulo, o Colégio Equipe é um dos que nos últimos anos passou a dar mais espaço ao assunto. Antes de se trabalhar a escravidão, a disciplina de história no ensino fundamental expõe aos alunos as diversas realidades africanas. Em uma parceria com a área de língua portuguesa, o tema é ampliado com a história em quadrinhos “Angola Janga”, de Marcelo D’Salete, que trata do quilombo de Palmares.
A ideia da escola é também ir além do passado. “Zumbi ainda é uma personalidade importante. Mas, mais do que personagens, a discussão caminha para atores sociais que atuam ainda hoje”, diz o professor de história Mauricio Freitas.
LIVROS PARA CONHECER MELHOR A HISTÓRIA DOS POVOS AFRICANOS
“A África na Sala de Aula – Visita à História Contemporânea”, de Leila Leite Hernandez (Selo Negro, 680 págs., R$ 74 a R$ 81)
“Agbalá – um lugar continente”, de Marilda Castanha (Cosac Naify, 48 págs., a partir de R$ 17,90 na Amazon)
“Angola Janga”, HQ de Marcelo D’Salete (Editora Veneta, 432 págs., R$ 58 – R$ 89,90)
Coleção História Geral da África – dois volumes editados por Valter Roberto Silvério e disponibilizados para download gratuito no site da Unesco
“Coração das Trevas”, de Joseph Conrad (diversas editoras). A professora da USP Leila Leite Hernandez sugere aos adolescentes ler e emendar com o filme Apocalipse Now
“Histórias da Preta”, de Heloisa Pires Lima (Companhia das Letrinhas, 64 págs., R$ 35,90)
“Toques do Griô – memórias sobre contadores de histórias africanos”, de Heloisa Pires Lima e Leila Leite Hernandez (Melhoramentos, R$ 24,90 a R$ 49,60)
Fontes: Leila Leite Hernandez e Mauricio Freitas
Para ler na íntegra (apenas para assinantes da Folha de S. Paulo ou UOL), acesse https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/11/novo-ensino-de-historia-da-africa-no-pais-destaca-resistencia-e-cultura-afro.shtml
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Conheça o livro A África na sala de aula, de Leila Leite Hernandez, publicado pela Selo Negro Edições:
A ÁFRICA NA SALA DE AULA
Visita à história contemporânea
Autora: Leila Leite Hernandez
SELO NEGRO EDIÇÕES
Uma visão clara e abrangente da África contemporânea, que reúne questões polêmicas sobre o domínio europeu e a diversidade das lutas contestatórias até a formação dos Estados nacionais. Com rica pesquisa cartográfica, a obra interessa aos estudiosos de história, geografia, antropologia, ciência política e sociologia.
Edição revista.