Força diz não reconhecer heroísmo no movimento que exigiu fim da chibata; projeto que o declara herói avançou no Senado

Texto parcial de matéria de Fernanda Canofre,
publicada originalmente na Folha de S. Paulo, em 19/11/2021

“A Marinha me pediu que eu pedisse vistas, que ela me traria vários argumentos e documentos que eu não conheço”, explicou o senador Izalci Lucas (PSDB-DF), por videoconferência, em uma sessão da Comissão de Cultura, Educação e Lazer do Senado.

Na ocasião, no começo de outubro, era discutido o projeto de lei que propunha inserir o nome de João Cândido Felisberto, líder da Revolta da Chibata (1910), no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria.

Duas semanas depois, em 28 de outubro, o senador deu voto favorável à proposta, aprovada por unanimidade na comissão, mas pediu licença para ler a nota enviada pela Marinha.

Nela, é defendida uma posição expressa há anos: a Marinha cita quebra de hierarquia e disciplina e diz não considerar o movimento —que teve cerca de 2.300 marinheiros amotinados pelo fim do castigo físico— “ato de bravura” ou de “caráter humanitário”.

A nota da Marinha fala das ameaças de bombardeio à cidade do Rio e afirma que vidas foram sacrificadas, incluindo duas crianças, atingidas por projétil —historiadores dizem que os marinheiros juntaram dinheiro para ajudar as famílias delas.

A Marinha diz ainda não considerar que os castigos físicos estivessem corretos, mas salienta que reconhecer erros não justifica avalizar outros, citando a exaltação das ações dos revoltosos como exemplo.

​Caso o projeto avance na Câmara dos Deputados e seja sancionado, será a conclusão de mais de uma década de tentativas de reconhecer o “Almirante Negro”, oficialmente, entre os nomes da história nacional.

Para que um nome seja gravado no Livro de Aço é preciso que uma lei ordinária seja aprovada nas duas Casas, por maioria simples, e sancionada pela Presidência da República. O livro tem hoje 49 nomes inscritos e outros 9 já aprovados —os mais recentes foram inseridos em 2018.

Relator do projeto na comissão do Senado, Paulo Paim (PT-RS) foi também o primeiro a propor o reconhecimento de João Cândido na Casa, por meio de um projeto de lei que acabou arquivado na Câmara. O atual é de autoria do ex-senador Lindbergh Farias (PT-RJ).

Ao ver a comissão aprovando, em setembro, a homenagem a Alberto Mendes Jr., tido como herói e patrono da Polícia Militar de São Paulo, ele diz que aproveitou para trazer a proposta sobre o marinheiro de volta à pauta.

“Se a Marinha tivesse pressionado senadores, não tenha dúvida que não teria essa votação unânime. Quando fui para a votação, tinha dúvidas se íamos conseguir aprovar”, diz Paim. “Se a Marinha jogasse pesado, o projeto não seria aprovado. Eu não tenho dúvida”.

A Marinha não respondeu às perguntas enviadas pela Folha.

Paim propôs reconhecer João Cândido como herói nacional em 2007, um ano antes de o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sancionar o projeto de Marina Silva (na época, PT-AC), que concedeu anistia póstuma a ele e aos outros marinheiros da revolta.

O trecho que garantia todos os efeitos da anistia, citando promoções que os anistiados teriam tido direito caso tivessem seguidos no serviço ativo e pensão por morte, foi vetado. A justificativa do governo foi o impacto orçamentário que geraria para a União.

Na época da revolta, a anistia foi aprovada por unanimidade no Congresso, mesmo assim, marinheiros foram presos, outros expulsos da Marinha, alguns fuzilados.

O próprio João Cândido foi expulso, preso, morreu pobre anos depois e nunca foi promovido a almirante, apesar de ter sido chamado assim pela imprensa e pela população da época.

“Foi uma batalha enorme para fazer essa aprovação, e a razão é sempre de natureza política e ideológica”, diz Marina. “Essa visão reacionária está dentro do Congresso desde sempre”, afirma.

“Os atos de reparação por parte do Estado quando se comete erros, crimes, danos são previstos na lei. É justo que, da mesma forma que haja atos de reparação em relação às vítimas da ditadura militar, nesse caso também haja ato de reparação para os familiares”, avalia.

Ainda em 2008, Lula inaugurou uma estátua de João Cândido no Rio, em um evento sem a Marinha ou representante do Ministério da Defesa.

“Precisamos aprender a transformar os nossos mortos em heróis”, declarou. À Folha a Marinha afirmou que não reconhecia heroísmo no movimento, mas não se opunha à estátua.

“Como os rebeldes deixaram claro, tratava-se de uma revolta contra o uso de castigos físicos, contra as condições de trabalho e os baixos salários. Embora proibida pela Constituição, legislação paralela permitia a continuação das chibatadas na Marinha (no Exército, usavam-se as espadeiradas) e isto 22 anos depois da abolição da escravidão”, aponta o historiador José Murilo de Carvalho.

“Na expressão usada pelos rebeldes, queriam uma Armada de cidadãos, não uma fazenda de escravos. A Marinha tinha tido tempo mais que suficiente para fazer as mudanças exigidas pelas novas tecnologias no recrutamento de praças, no treinamento de praças e oficiais, já adotadas em outras Marinhas e não o fez. Tínhamos os melhores encouraçados do mundo numa organização totalmente defasada”.

[…]

Para ler a matéria na íntegra (restrito a assinantes da Folha de S. Paulo ou do UOL), acesse: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/reconhecimento-de-joao-candido-como-heroi-enfrenta-resistencia-da-marinha.shtml

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Quer conhecer melhor a história de João Cândido? Conheça sua biografia, que faz parte da Coleção Retratos do Brasil Negro:

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JOÃO CÂNDIDO
Retratos do Brasil Negro
Autor: Fernando Granato
SELO NEGRO EDIÇÕES

Conhecido como “Almirante negro”, João Cândido Felisberto foi o líder da Revolta da Chibata, ocorrida no Rio de Janeiro em 1910. Figura importante na luta por melhores condições na Marinha, esse herói brasileiro só teve sua anistia concedida em 2008, 39 anos após sua morte. Fruto de ampla pesquisa, esta biografia mostra o lado humano de João Cândido, cuja vida foi marcada por tragédias, perseguições e miséria.Esta obra faz parte da Coleção Retratos do Brasil Negro, coordenada por Vera Lúcia Benedito, mestre e doutora em Sociologia/Estudos Urbanos pela Michigan State University (EUA) e pesquisadora e consultora da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. O objetivo da Coleção é abordar a vida e a obra de figuras fundamentais da cultura, da política e da militância negra.

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